03/02/2009

Ocupação


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Cochilando na varanda,com os pés pro ar,Lucia sente a brisa lhe dedilhar. Deitada na rede,sonhando, até que a hora de buscar as crianças a interrompa. (por instantes pensa no alívio que é não ter filhos, ao menos uma vez na semana). No impulso largou a preguiça e levantou-se à caminho da cozinha; já imaginando o quarto o armário os lanches, os brinquedos das crianças. Entrou na cozinha e pediu Elza para arrumar a mesa do café da tarde.
Na saída da escola avista Pâmela: mãe loira e amável, porém,problemática. Sempre com roupas largas na pretensão de esconder a magreza.Pálida,lábios grossos,traços fortes,óculos escuros;para esconder a dor. De dentro do carro Lucia fica imóvel,com olhos de piedade - Pâmela gosta dos filhos,pensa,mesmo chapada não os prejudica de maneira "trágica". Os filhos não percebem,mas a sociedade condena. - Uma mão de criança bate com os dedos no vidro do carona - pisca,logo vê o sorriso banguelo de seu filho mais novo, Arthur.
Chegou em casa com ar de pena,pediu à Elza que desse banho nos filhos,coisa que impreterivelmente fazia,mas hoje não. Subiu as escadas com passos pouco firmes,ombros que buscam o chão.Tomou banho. Deitou dez horas,sem os beijos dos pequenos,sentindo angústia e vazio (na cama).Marcelo estava em São Paulo a trabalho,voltaria em oito dias.Ainda era o 3º.
Suspirou fundo e em dissonante continuação soltou - Ai ai - como quem solta o sutiã,expira;e afoga o rosto nos travesseiros imaculadamente brancos.Pega no telefone com entusiasmo,ligar para o marido!Mas desiste.Medo de incomodar.Reuniões,negócios,negócios,a vida de executivo de Marcelo,a secretária que sempre diz em tom forçado - Ele está ocupado no momento,dona Lucia. - Ora,dona; Lucia trava o maxilar e sente na saliva a antipatia gratuita de Márcia: a secretária.
Levanta da cama e fica de frente pro espelho,franje a testa e faz cara séria,ar de reprovação...Molda a sobrancelha em acento circunflexo.Batem na porta.
- Entra! - Lucia ainda de frente para o espelho,agora com as mãos na cintura.
Elza entra com um copo de leite e deixa-o na mesa de cabeceira,devagar,olha pra Lucia.
- Que foi? - Silêncio.A empregada a observa e, com calma lembra, de quando ainda era babá e noiva de Mathias."Lu, sempre de frente pro espelho,ensaiando caretas,fazia bico e beijava o reflexo com baton rosa infantil",ah!Memória.
Elza respira baixinho,fala baixinho:
- Que cara é essa,minha filha? - Lu solta os braços e sai da frente do espelho,bufando.
- Zinha,tô nervosa! Faz chá!
- Chá?
- Não! Faz café,não!Faz suco - Nem sabia oque queria,quer dizer,sabia. Como?Sentou no pé da cama e encolheu o corpo,encostou a cabeça.
- Ai, sei lá. - Vermelha,engasgada.Fitou a pobre Elza e disse -"Faz suco de Marcelo,não! Faz suco de Márcia com limão,sem açúcar". 
Assim soltou a raiva, que no início da tarde era piedade.
- Ô Lucinha, não fica chateada com isso.Toma seu leite. 
Lu obedece a babá,pega no copo,bebe de gole em gole e molha o buço de nata. Elza liga o abajur;ao lado o porta retrato do casal numa viajem ao Chile. Arruma as cobertas e diz à Lucia que: " você tem marido e dois filhos" - enquanto levanta o endredon para lhe cobrir.Lu se acalma,relaxa a testa; aquele olhar inseguro, covarde,pouco malicioso. Olhos que ardem de cansaço de uma vida doméstica luxuosa light,pisca,enxerga coisas.E Marcelo? Molham-se os cílios. Mulher frágil,mas finge que sofre.Acontece que a raiva circula pelas artérias.Suspira,decepcionada em concordância conjugal: força do hábito.
Elza levanta da cama, beija a mão de dedos finos - "Dorme com Deus". - E apaga a luz. Retira-se da suíte, fechando a porta,com cuidado.
No escuro os olhos permanecem abertos,nas esperança de capitar alguma luz;para dilatar.Pensa de novo no marido,no whisky do final do expediente,São Paulo,preço do dólar, na saleta de design moderno onde todos estão socialmente elegantes. Que raiva daquela empresa,que roubara seu marido - ou o marido a trocara, pela empresa(ou pela secretária?). Decidiu parar de pensar,antes que se tornasse doida varrida,começasse a tomar remédios e, e não! Não quero ser Pâmela.
Virou para o canto e fez o nome do Pai.Fechou os olho; Oque os olhos não vêem o coração pressente.
Dormiu.
Acordou.Uma manhã normal, se espreguiçou de frente pra janela; céu azul,observa a hera que cobre o muro e pensa, que nos Estados Unidos as casinhas são também "unidas" por simpáticas cercas de 1 metro,a maioria com um portãozinho( convívio com os vizinhos?) Estados Bonitos...
Sente o cheiro da broa de fubá que vem da cozinha,escuta os passarinhos e o barulho da mangueira ligada no jardim. Lava o rosto e desce as escadas descalço,entra na copa e pega um pedaço de broa.Vai pra sala de televisão,onde os dois filhos, Hugo e Arthur assistem desenho animado.
Beija a testa de cada um e senta-se no meio,abraçando-os.
- Cadê a Zinha?
- Passando roupa. 
Responde Hugo,o filho mais velho, que olha fixadamente para a tv.
Lucia abraça os filhos de leve,como o pássaro que acolhe seus filhotes.Confere se as unhas estão cortadas e sente a energia que emana das mãozinhas dadas.Momento bom,pensa (que não está disponível no mercado nacional). Orgulhosa.
O telefone toca:
- Alô!Marcelo?