16/02/2013

Alfredo,



Passei dias remoendo orgulho daquela maneira que nos é comum: organizei todas as gavetas e prateleiras do meu casulo. O casulo é mediano e não é a poeira que incomoda,  é sempre o saudosismo de nossas conversas e a veemência dos fatos que prevíamos de maneira tola a gargalhar no terraço da casa dos Dias. Sei que ao me ler sentes pena, sim, pena do único amigo que ainda tens ser um velho bobo. Nunca pensamos em mulheres com toda a frivolidade ensinada aos nossos conterrâneos. Confesso que não casei, não tive filhos e não tive chance de saber se todo o meu saudosismo é mera demagogia. Não tenho mais idade para me arrepender, na verdade não entendo como a idade aumenta e os laços de amizade se desfazem como uma dança sem ensaios (ainda confundo deslocamento com distanciamento). Será que todos percebem o erro da dança? Alfredo, este ano completo a idade que desejei morrer. Vou à Salvador e não ficarei na sua casa, não quero depender de ninguém, respeito minha vontade e seus humores, afinal, somos velhos demais para fazer sala. Levarei um livro que ganhei da minha afilhada, o mais importante não foi ser um livro em francês do Rimbaud, mas foi a dedicatória que ela escreveu! Claro que eu não entendi todas as palavras, mas me senti feliz por receber tantas palavras, fico me perguntando se Bia contou à filha que éramos colegas de francês e que após as aulas bebíamos e sempre chegávamos em casa repetindo versos de Arthur Rimbaud, até o dia que ela brindou  "vous serez le parrain" e eu, sorrindo oui  pensando que seria padrinho da noiva que bebe e se solta nos ares da orla de Copacabana  Nesse dia ela "je suis enceinte". Não dei bola, não tive curiosidade. Bia percebeu, era só uma palavra, esse dia fomos embora cedo, era final de semestre. Nos despedimos e ela disse para que eu conferisse o dicionário na página marcada, não olhei dicionário, fui dormir. No dia seguinte é que vi; enceinte: grávida. Não me assustei; somos, éramos amigos e Bia estava bem, na verdade gostei da maneira como fiquei sabendo. Bia foi a mulher mais discreta que conheci. Não sei dela, mas sei que criou Flora para ser tudo que ela nunca foi e deve estar satisfeita quanto a isso, Flora domina a língua que um dia brincamos de aprender. No livro veio uma foto dela em uma praia de Nice, estou certo que a vontade de ir para Bahia está vinculada com tudo isso. Sou eternamente catártico. Não voltarei para o francês, antes que penses nisto. Mas, banho de mar, autor favorito e meu último amigo são os únicos presentes que eu poderia desejar nesse último ano. E antes de despedir, caro Alfredo, consegues tu, desejar três coisas antes da minha chegada? És mais velho que eu, ainda desejas as coisas?